quarta-feira, 30 de março de 2011

Refúgio



A criança olhava triste para o mar, observando as ondas quebrarem na areia, em um movimento contínuo e melancólico. O vento cheio de maresia e trazendo o odor de sargaço, soprou-lhe no rosto, jogando seus cabelos em seus olhos.

Estava só.

Mais uma vez.

A praia não estava vazia, pelo contrário, havia pessoas por todos os lados: no mar, brincando na areia, deitadas sob o sol ou protegidos pela sombra de um guarda-sol. Milhares... mas ao mesmo tempo... ninguém.

Um frio percorria-lhe a espinha: uma sensação de vazio, que aprendeu a gostar. Era algo que havia identificado como seu... que constituía sua própria identidade.

A solidão era sua... virara amiga e companheira. E não havia mais ninguém, apenas ele e seus pensamentos.
Eram tristes... pois neles só haviam lembranças: momentos que não voltariam. Um tempo em que viver significava estar ao lado de quem amava; de sentir o seu abraço... o calor confortante de seu colo.



Um tempo em que ouvia seu nome murmurado em doce melodia: Christian... Mas a melodia se fora... sua mãe se fora! E o que restara fora o orfanato.

Seu nome fora esquecido. Substituído por uma alcunha depreciante: Cachinhos Dourados, por ser um loiro quase branco e apesar de liso, nas pontas, os fios de seu cabelo faziam uma leve ondulação.

No orfanato não houvera acolhida. Christian era apenas mais um número, mais uma boca para alimentar. Não importava que os cuidados oferecidos fossem precários e sim que as doações e incentivos fiscais eram generosos. As crianças se acotovelavam em brigas que representavam uma disputa interna de poder. Imperava a lei do mais forte... e a capacidade de bajulação dos mais fracos.

Quem não se adequava à política interna, era alvo.

Socos, roubo de comida, roupas rasgadas e torturas de cunho emocional faziam parte da rotina diária de Christian, que buscava se isolar.

Mas o isolamento não o protegia....

Não fisicamente, mas ele aprendera a não se importar com o que lhe acontecia. Com apenas nove anos, aquela criança aprendera o desapego: desapego pela vida... e por tudo o que ela representava.

Havia poucas coisas que o faziam se sentir vivo. Uma delas era a sensação de vazio que lhe acometia e que aprendera a gostar. Quando a sentia, significava que estava só... e em segurança. Outra era ir à praia e ver o mar. A paisagem trazia saudade, não de um momento específico, mas de uma pessoa específica. Mas do que saudade, a paisagem trazia lembranças...

Ele lembrava de sua mãe.

A criança caminhou para dentro da água. A temperatura não estava fria, pelo contrário, amenizava o calor sofrido. A maré esvaziava e o paredão de recifes despontava a poucos metros e as ondas colidiam furiosamente contra o paredão de pedra. É para lá que Christian queria ir. Não era um bom nadador, mas sabia nadar. Aprendera com o pai há dois anos, e, tempos depois, o abandonaria com a mãe doente. O pai não o veria se tornar homem, assim como não viu a mulher definhar por conta da doença. Ele não veria as economias familiares minguarem junto com a vida que se esvaia da mulher que jurara amar.

Não. Ele não veria!

Com braçadas débeis, Christian avançava em direção às pedras. Com a cabeça fora d’água, suas pernas trabalhavam de forma vigorosa tentando sustentar seu corpo, impedindo-lhe de afundar. Mas, apesar de seus esforços, vez ou outra a água salgada assomava-lhe a boca, sufocando-o e fazendo-o tossir. Estava cansado. Mas, seu objetivo estava próximo.

Quinze minutos depois chegava ao recife. Seus joelhos estavam ralados na tentativa de subir na rocha. O vento assoprava forte, e algas e limo escorregadio se espalhavam por todos os lados. Cansado, sentou-se na pedra deixando o vento balançar-lhe o cabelo molhado. Estava cansado e olhou orgulhoso para o mar, medindo a distância percorrida. Há muito tempo não se sentia como agora... estava feliz.

As pessoas na praia estavam distantes. Do local onde se encontrava, não conseguia ouvir seus barulhos. Se fechasse os olhos, ouviria apenas o bater violento das ondas na pedra. A água respingaria de forma refrescante em seu rosto e o vento resfriaria o seu corpo esquentado pelo sol. Não haveria ninguém, só ele e essa sensação que sentia. Era uma nova sensação, e ela o fazia sentir-se vivo... e protegido.

Christian se levantou e caminhou em direção ao outro lado do rochedo. Nas pedras ouriços estavam fixados nas reentrâncias do recife, movendo lentamente suas espículas, prontos para se defenderem. Havia também pequenos caranguejos que fugiam com sua aproximação, tentando se esconder. Ele se identificava com esses últimos. Seu maior desejo era fugir dos olhares.

Uma onda colidiu com o recife e as águas bateram na perna do garoto, fazendo-o perder o equilíbrio. Um novo ferimento se formou no joelho já machucado, abrindo um corte e fazendo o sangue escorrer pela perna. Ele levou a mão ao local que latejava em contato com a água salgada.

Uma lágrima escorreu de seu olho. Era estranho, aprendera a não chorar, mesmo quando apanhava das outras crianças do orfanato, quando seu lábio se abria com os golpes e seu olho fechava devido aos socos... nenhuma lágrima escorria, nem mesmo um gemido. Apanhava passivamente, mas nesse momento, um leve ardor era o bastante para fazê-lo chorar.

E ele teve vontade de rir, pois ali, sozinho, naquele lugar, sentia-se mais vivo do que nunca. E nesse momento, ele lembrou da mãe... mais uma vez. Seus cabelos lisos, caindo sobre o rosto quando ela se debruçava para dar seu beijo de boa noite, seu perfume de lavanda, seu olhar terno... e de sua voz. Ele podia ouvi-la. Ela cantava e sua voz embalava todos os seus sentidos. Não sentia mais o vento o sol ou o vapor de água. Não ouvia as ondas... nada. Apenas a voz de sua mãe. O som era agradável, um acalanto.

Lembranças fortes... sensoriais.

- Amo você... mãe – as lágrimas escorreram abundantes enquanto murmurava.

- E eu a você, Chris.

Christian piscou os olhos tentando desanuviar a visão embaçada pelas lágrimas. Ele a via. Não havia o rosto cadavérico, deformado pela doença. Não havia expressões mal disfarçadas de dor. A mulher em sua frente simbolizava momentos esquecidos: um tempo em que era feliz.

- Mãe? Você está aqui... comigo?

- Sempre estive meu amor.

- Por que eu nunca te vi?

- Porque nunca se permitiu. Sempre estive aqui – Encostou o dedo no peito dele. O toque era quente – e aqui – tocou na têmpora da criança.

- Mas eu sempre quis... eu... eu... sentia sua falta.

- E eu a sua. Mas, naquele lugar horrível onde você foi parar, você não permitia que eu me aproximasse?

- Não... eu queria.

- Eu sei meu amor, mas... era o que acontecia.

- Não vai mais acontecer. Não vou deixar que você fique longe de mim.

- Mas, você precisa seguir sua vida, meu filho.

- Eu não quero...

- Mas precisa. Lembre-se apesar de não estar mais com você, eu vivo através de você.

- Não se vá, mãe... por favor! – sua voz saía de sua garganta de forma gutural, junto ao choro – por favor. Não quero... ficar sozinho... de novo.

Ela não estava mais lá, mas havia transformado a criança. Ele não era mais o mesmo. Naquele local, ele desaprendera a ficar sozinho. A solidão não era mais sua companheira... transformara-se em seu algoz.

Naquele recife, ele vira a mãe... ou sonhara que vira. Aquele local tornara-se seu refúgio... seu reino sem muros. Seu livre acesso a única pessoa que o amou. Christin enxugou as lágrimas e olhou para a praia. Estava quase deserta. O sol já não estava tão forte e a maré voltava a encher. Levantou-se e sentiu o corpo reclamar do longo tempo sem movimento. Caminhou em direção a beira do recife para mergulhar. Precisava voltar para a praia... e para casa.

O orfanato.

Sentiu o frio percorrer-lhe a espinha. A sensação que outrora era tão íntima e pessoal e até... desejável, era quase dolorosa.

Pelo que percebera, havia passado muito tempo naquele recife, mas, para ele, o momento com sua mãe fora breve... e feliz. Fora intenso; como há muito não sentia.

Não conseguiria voltar... não poderia deixar esse que se tornara o seu refúgio. Sentou-se novamente na pedra e voltou a lembrar da melodia... da voz que o embalava. Estava feliz..
.
Estava com sua mãe.

A maré subiu e varreu o recife com suas águas frias. Lavando as pedras, arrastando a tudo... e levando uma vida infantil.

Christian morria, mas estava feliz.

Voltara para sua mãe...

9 comentários:

  1. Muito bom, Marcos... Mas, Dá para escrever um mais alegrinho? hauahuahauahu

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  2. Excelente!!! Bastante tocante e comovente! Vc está de Parabéns!

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  3. Marcos.... nem sei como começar....
    Você se superou nesse conto.
    Ele é tão tocante e singelo... as palavras colocadas com uma sonoridade tão leve em um momento tão crítico. PARABÉNS...
    Fiquei super a vontade com a narração... e a força que o personagem tem é impressionante...
    Parabéns!!!!

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  4. Moisés,

    Eu que não sei por onde começar... você não sabe a satisfação que me deu em ler seu comentário.

    Grande abraço.

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  5. Marcos... Rapaz, estou sem palavras...
    É incrível... singelo... tocante... impressionante...
    Se eu fosse falar a lista completa, seu blog ficaria mais lento com a sobrecarga. Muito bom!

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  6. Obrigado Pedro,

    Não esperava que o conto tivesse essa aceitação. Fico muito feliz que tenha gostado.

    Abraço

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  7. Excelente conto, toca de maneira sutil as emoções e os sentimentos vividos por conta de um acontecimento derradeiro, crítico.
    O final, apesar de um tanto melancólico, por conta do desenrolar da narrativa, dá o toque de excelência de que os grandes contos precisam para se eternizarem.
    Afinal, nem tudo na vida são flores...

    Parabéns.

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  8. Oi Marcos!!
    Vou começar dizendo que não gosto de contos!! É verdade! Sempre que leio um conto fico com aquela sensação de que muito mais havia para ser dito e não foi.Que tudo aconteceu de maneira superficial. Entretanto isso não aconteceu aqui.
    O conto foi perfeito. Suficiente. Inteiro. Preciso e emotivo na medida certa.
    Mesmo com tão poucas palavras fui capaz de imaginar e entender como tinha sido a vida dessa criança e perceber no que ela havia se transformado. Entender toda a dor e o sentimento de solidão.
    Parabéns!!!
    Agora já posso dizer que li um conto do qual gostei,
    bjs

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  9. Fico feliz com isso. Confesso que fiquei particularmente satisfeito com esse conto. Quando terminei de escrevê-lo, achei que estava sem graça, mas, após lê-lo fiquei surpreso.

    Coisa de momento...

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