quarta-feira, 9 de março de 2011

Peregrino - Capítulo 1

Esse é o primeiro capítulo de "Peregrino". Ele, inicialmente, era o prelúdio do livro e era demasiado descritivo e monótono. Após algumas mudanças, tornou-se o primeiro capítulo e explica o cerco feito à aldeia, como foi mostrado na postagem do segundo capítulo. Espero que aproveitem e façam suas críticas.
Boa leitura.


Capítulo I
Com o sol a pino os cavaleiros chegaram aos portões do castelo do Duque da Desesperança. Haviam percorrido um longo caminho desde Kador, a capital do reino de Brant, até o fronteiriço feudo do irmão do rei. A Tropa Especial era composta por uma cavalaria pesada, fortemente armada, com um contingente de setenta e oito homens. Seu líder, Sir Enoque, decidiu que era melhor passarem a noite no castelo para que seus homens e suas montarias pudessem descansar antes de chegarem à aldeia rebelde.
- Abram os portões – gritou o líder da Tropa.
O estandarte com o brasão do rei balançava ao vento. Os sentinelas observaram o grupo de cavaleiros e, após reconhecerem o brasão do monarca, abriram os portões. As dobradiças dos pesados portões de madeira rangeram ao se abrirem e em pouco tempo os cavaleiros chegaram ao centro do pátio da enorme fortificação.
Os cavaleiros desmontaram e conduziram suas montarias pelas rédeas até o estábulo do castelo. Eram todos exímios guerreiros. Tão hábeis no manuseio da espada quanto apreciadores de mutilar, matar, saquear e violentar as mulheres daqueles que iam de encontro aos interesses do reino ou não conseguiam pagar os impostos abusivos que eram exigidos ao povo, e que bancavam o luxo e as vontades da nobreza corrupta e parasitária de Brant.

Brant era um dos reinos mais prósperos do Grande Continente. Suas terras eram inundadas pelas cheias de um imenso espelho d’água alimentado por vários rios, entre eles o rio Tormenta, um rio caudaloso e cheio de corredeiras, que nascia na grande Cordilheira e dividia o Grande Continente. Essas cheias periódicas fertilizavam as terras e eram responsáveis pela grande prosperidade de Brant.
Os cavaleiros deixaram suas montarias aos cuidados dos cavalariços do feudo, e dirigiram-se para a saída do estábulo. Por respeito e por temor, os jovens que iriam cuidar dos cavalos procuravam ficar de cabeças baixas sem fitar os temíveis cavaleiros do rei. Sir Berwin, um dos Comandantes da Tropa, pressentiu o temor dos cavalariços e resolveu se divertir um pouco.
- Espero que esses cavalos estejam alimentados, descansados e em ótimas condições quando viermos pegá-los pela amanhã – disse fitando um dos súditos do duque.
- Si-sim, daremos o melhor de nós, senhor – respondeu um dos cavalariços, sem fitar o guerreiro.
- Acho bom que o melhor de vocês seja o suficiente, caso contrário, passaremos a montar selas feitas do couro de vocês.
Os jovens não responderam e os cavaleiros se retiraram sem olhar para trás e sem perceber que os cavalariços tremiam.
Após saírem do estábulo Sir Enoque dirigiu-se a Sir Berwin olhando seriamente para seu subalterno.
- Berwin, porque você disse aquilo a eles?
Cabisbaixo, sem fitar o líder do destacamento Berwin ficou constrangido por ter sido repreendido na frente dos outros cavaleiros.
- Senhor?
- É Berwin, você não deveria ter dito aquilo. Uma palavra de um cavaleiro não pode ser desfeita. O que faremos se o couro deles for de má qualidade?
Os cavaleiros riram e Berwin também. Estava aliviado. Mesmo após três anos sob o comando de Sir Enoque ainda não havia se acostumado ao humor volátil de seu superior.
Em pouco tempo estavam no interior do castelo. O luxo era evidente e em todos os cantos podia-se observar o gasto ostensivo do duque. Castiçais de ouro e tapeçarias ricamente detalhadas enfeitavam a parede. As velas que queimavam nos castiçais exalavam um perfume adocicado no ar, diferente do cheiro característico de parafina que era sentido em locais iluminados por muitas velas como aquele. O cheiro fez as lembranças aflorarem na mente de Enoque. Lembrou-se da primeira vez que havia entrado em um templo, onde o ar era impregnado pelo odor de incenso e parafina. Mas onde se encontrava agora, o ar tinha um cheiro agradável e não os odores nauseantes e exagerados que sentira e que agora suas lembranças faziam voltar à tona.
O Chefe da Guarda do castelo os havia recebido e os conduzia pelo interior da fortificação. Os cavaleiros subiram uma escadaria e percorreram um imenso corredor. Os Comandantes da Tropa Especial, entre eles Sir Berwin, entreolharam-se. Depois de tanto tempo lutando juntos, um olhar era o bastante para se fazerem entender. A segurança do castelo era precária. Havia poucos guardas nas muralhas e dentro do castelo. Enoque assentiu com a cabeça. Havia observado os olhares de seus subordinados, e a atenção que davam ao luxo existente não havia passado despercebido pelo líder observador. Os rumores palacianos eram verdadeiros.
De acordo com o que era sussurrado nos corredores de Kador; o Duque, irmão do rei Alcebíades e o único na sucessão do trono, não se interessava pela vida administrativa do reino e de seu próprio feudo. Era um amante de festas e tinha como peculiaridade, o amor a belas mulheres, a orgias e a seqüestrar as filhas e mulheres de seus súditos a fim de saciar suas necessidades mundanas. Governava seu feudo à iminência de uma rebelião. Sua determinação mais impopular era que uma súdita, ao se casar, deveria ter sua primeira noite com ele.
Nos reinos vizinhos, dizia-se que devido às terras férteis de Brant, sua nobreza havia se tornado acomodada e para manter o luxo a que havia se acostumado, submetia a população a uma carga de impostos excessiva, o que empobrecia ainda mais seus miseráveis súditos. A população mais castigada era a da região ao sul de Brant, sob o jugo do Duque da Desesperança, nome dado ao irmão do rei devido ao tratamento degradante dado aos seus súditos e à proximidade com a Floresta da Desesperança, uma região inóspita e cercada de mistérios.
Os cavaleiros haviam chegado ao final do corredor. Após passarem por diversas portas fechadas chegaram a uma imensa porta dupla de madeira maciça. Tinha três metros de altura e dois soldados com armaduras faziam a guarda para e entrada do salão.
O Chefe da Guarda fez sinal com a mão para que os soldados permitissem a entrada e abrissem a porta. Um imenso salão com um trono ao fundo pôde ser visto por todos. Os cavaleiros entraram. Havia uma imensa pintura na parede representando o Duque em um corcel branco e uma mulher seminua a sua garupa. Ela vestia apenas uma túnica e um dos seios descobertos era comprimido sobre as costas do Duque. Seus cabelos longos e loiros cobriam suas costas. O Senhor do castelo era representado com uma armadura de couro trançada e presa em sua cintura havia uma espada longa com empunhadura finamente trabalhada.
O Duque estava sentado ao trono e observava a entrada dos cavaleiros. Era uma figura insólita. Estava longe de parecer-se com a imagem retratada na pintura. O homem sentado ao trono apresentava olheiras profundas e escuras, um corpo cheio de dobras e flácido devido aos excessos alimentares. Sua pele amarelada dava a impressão de que seu fígado já não agüentava mais as noites regadas a vinho. Era um glutão decadente.
Dentro da sala havia mais dez soldados. Três deles se aproximaram do Chefe da Guarda e junto com esse, pediram que os cavaleiros entregassem suas armas. A tradição determinava que em tempos de paz um cavaleiro não deveria se apresentar armado para seu anfitrião. Os homens entregaram suas armas, mas Enoque se recusou.
- Por favor Sir Enoque, sua espada – O Chefe da Guarda pediu gentilmente.
- Ela está bem dentro de minha bainha. E tem minha palavra que é lá que permanecerá.
- Sir Enoque, eu insisto, o protocolo diz que um homem honrado...
- Está insinuando que eu não tenho honra? – Enoque interrompeu.
- Não senhor, peço apenas que me entregue sua espada.
- E eu estou dizendo que tem a minha palavra de que essa espada não sairá de minha bainha, então não tem o porquê de se preocupar.
- Mas senhor, o nosso costume...
- O que tem o seu costume? – respondeu irritado – Estou dizendo que não vou entregar minha espada. Eu conheço seu costume. Mas eu sou um guerreiro. E um guerreiro não entrega sua espada. Uma palavra proferida não pode ser retirada. Estou dizendo que em hipótese alguma essa espada sairá de minha bainha. De onde venho, a palavra de um guerreiro tem importância. Em minha terra uma espada só deverá ficar longe de seu dono em reunião entre iguais ou diante de um superior. E não vejo aqui essa situação!
- Você está insinuando que é superior a Sua Alteza, o Duque Agnelo
- Não. Apenas estou a serviço do rei. Sua Majestade, apenas ele, é meu superior. Vim com os meus homens resolver o problema do sereníssimo duque que está ocupado demais com suas festinhas para ter capacidade de resolver um problema incomodo como uma aldeia. E alguém que precisa de minha ajuda não está em condições de exigir coisa alguma de mim.
Os dois gritavam a plenos pulmões. O Chefe da Guarda encarou Enoque que sustentou o olhar. O oficial de Agnelo estava enfurecido, suas artérias pulsavam visivelmente nas têmporas e seu rosto ruborizava em fúria. Não havia muito o que fazer, mesmo desarmados os cavaleiros do rei ainda eram um grande desafio para as forças do castelo.
- Seu moleque insolente – todos se viraram para escutar o duque com sua voz arfante devido à gordura – Quer dizer que meu irmão não sabe dar modos aos seus cachorros. Pelo visto ele soltou sua coleira muito cedo – falou com desdém.
- Ninguém põe coleira em Enoque de Baharan, nem mesmo o rei. Sua Majestade sabe disto e está na hora de vossa obesidade descobrir também – andou em passos rápidos em direção ao duque.
Antes que o Chefe da Guarda desse a ordem, os guardas do salão se interpuseram entre Enoque e Agnelo. Lanças cruzaram o ar e bloquearam a passagem do cavaleiro. Mais dois soldados aproximaram-se e se puseram atrás do líder da tropa. Apontavam suas lanças para o corpo do baharan e tinham os braços estendidos para que suas armas ficassem próximas ao corpo do inimigo, enquanto ficavam o mais distante possível do hábil guerreiro. As pontas de suas armas distavam poucos centímetros de seu alvo.
- Basta de insolência em meu castelo. Se você não fosse um enviado de meu irmão seu corpo já estaria transpassado pelas armas de meus homens. Mas Alcebíades sabe que paciência tem limite. Então aprenda a respeitar o senhor desse castelo ou terei que envia-lo de volta para meu irmão amarrado em seu cavalo e cheio de buracos.
- Essa é a grande diferença entre nós dois. Você não tem como cumprir o que promete. Não será nunca um guerreiro. A figura pintada ali é ainda mais distante da grotesca realidade – Apontou para a imagem pintada do duque com a mulher – Só com criação artística para torná-lo um cavaleiro. Garanto que é tão ruim na espada quanto é com as mulheres. Precisa de todo o poder do dinheiro e do sangue nobre para arrastar uma garota para sua cama. Afinal, com uma barriga dessas como é que você consegue fazer alguma coisa?
Os cavaleiros riam alto enquanto o duque ruborizava em cólera.
- Seu bastardo. Quero ver essa sua empáfia quando eu for o rei – gritou em plenos pulmões, cuspindo enquanto falava; tamanho era seu descontrole.
- Quer dizer que você almeja o trono do rei? – fingiu surpresa.
- Eu sou o primeiro na sucessão seu bastardo, não se faça de desentendido. Quero ver você implorar pela minha clemência. Guardas matem-no!
Os guardas olharam para os cavaleiros. Permaneciam parados observando a cena. Vendo os temíveis cavaleiros sem reagir, os homens de Agnelo resolveram investir contra Enoque.
Entretanto, assim que o duque deu a ordem, Enoque investiu rapidamente contra os soldados que estavam com as lanças cruzadas a sua frente. Além de hesitarem e terem os braços estendidos, os guardas atrás do cavaleiro não tiveram muito impulso para desferir o golpe contra o guerreiro. E assim, o ataque não teve força suficiente para causar algum dano sendo facilmente absorvido pela armadura de couro curtido.
Enoque havia derrubado os dois soldados a sua frente e tomado uma das lanças e agora girava a arma com maestria impressionando os guardas que tentavam cercá-lo. Um deles se aproximou pela esquerda levando a lança à frente na tentativa de perfurar o cavaleiro. O guerreiro girou o corpo esquivando-se facilmente do ataque e aproveitou o balanço da investida para acertar um potente golpe lateral no rosto de seu atacante com o cabo da lança.
O soldado caiu e em poucos minutos outros seguiram seu exemplo. A fama de Enoque já era grande e antes mesmo de o combate começar os guardas já hesitavam, mas vê-lo em ação e nocauteando seus colegas fez com que os soldados que estavam de pé se rendessem.
- Cães vira-latas eu vou comer as tripas de vocês no jantar. Como ousam se render contra apenas um homem? Honrem as suas calças e lutem!
Os soldados escutavam o duque, mas o medo do cavaleiro a sua frente era maior do que o medo do próprio duque da desesperança. Estavam acostumados a lutar contra aldeãos nunca contra um verdadeiro mestre de armas.
- Acalme-se duque. Isso foi só um aviso do monarca de Brant, para que você se lembre do quanto você precisa dele. E que ele tem feito vistas grossas quanto à sua vida luxuriosa, mas mandou dizer para que não se esqueça da parte dos impostos que cabe ao reino.
O duque se afundou em seu trono. Sentia-se humilhado e corroia-se de ódio de seu irmão e desse desgraçado que fizera chacota de todo seu feudo. Um dia ele se vingaria.
Enoque deu meia volta e dirigiu-se para a saída do grande salão. Chegando a porta virou-se para o duque. Tinha um leve sorriso nos lábios.
- Ah, Sua alteza, como prometido, minha espada não saiu de sua bainha – fez um gracejo.
O nobre mordeu os nós dos dedos para se acalmar enquanto o guerreiro se retirava. Os homens de Enoque pegaram suas armas e o seguiram para os aposentos destinados a eles. Sabia que não precisava temer qualquer ataque furtivo ou envenenamento por parte do duque. Ele precisava deles e temia a ira do rei Alcebíades.
Sir Berwin estava no aposento preparado para ele e outro comandante. Era o mais antigo cavaleiro da Tropa Especial. Estivera presente quando o rei havia dado a ordem para Enoque dar o aviso ao irmão. Tenho certeza que Sua Majestade não havia planejado que fosse assim. Ambos sabiam que Enoque não era dado a diplomacia e seus maus modos e orgulho já o havia posto em vários problemas. Uma vez o rei lhe confidenciara.
- Esse maldito Enoque; porque não cala a boca e fica quieto. Quase que ele nos colocou em guerra com a Fortaleza de Turah. Mas o desgraçado maneja a espada como ninguém...
Sir Berwin ria sozinho, lembrando da contenda de há pouco entre Enoque e o Duque Agnelo. É um louco esse Enoque. Enfrentar todos os soldados do salão sozinho. Quando o duque ordenou matá-lo temi que furassem ele todo. Mas com certeza ele já havia planejado tudo. Com certeza a história teria sido diferente se Enoque tivesse lutado contra soldados mais experientes. Berwin tinha certeza que Enoque havia exagerado. Mas o recado havia sido dado. Jamais o duque tentaria qualquer coisa contra o trono.
Mais uma vez Enoque havia se saído bem no final. O rei não precisava mais se preocupar. O monarca sempre fez vista grossa referente ao não pagamento por parte de seu irmão ao que cabia ao reino. Ao monarca não interessava que o duque conseguisse desenvolver seu feudo e assim, tornar-se uma ameaça em potencial. Estando os cofres do baronato sempre no limite, não havia recursos suficientes para manter um forte exército. Assim, o rei precisava enviar, de tempos em tempos, reforços para conter as possíveis revoltas de seu impopular irmão e para evitar as investidas estrangeiras.
O rei de Brant acreditava que enquanto seu irmão estivesse preocupado com suas festas e com os ataques na fronteira, não procuraria alçar vôos mais longos, colocando seu reinado em perigo. A falta de capacidade de formar um bom exército era uma forma de se garantir que o duque continuaria não sendo um problema.
Em raros momentos alguns aldeãos ensaiavam uma tímida revolta, mas com a ajuda do rei, o duque conseguiu conter as revoltas. Sabedor de estar sentado em um barril de pólvora, mas nunca disposto a conter sua lascívia, o Duque da Desesperança procurava deixar os impostos razoavelmente baixos, para assim, não haver mais descontentamentos. Coletava apenas o suficiente para manter as suas festas, seu luxo e as necessidades básicas do feudo.
Berwin se lembrava como o rei estava irritado quando chamou ele e Enoque para decidir a ação que teria no feudo do Duque da Desesperança. A benevolência dada ao seu irmão havia começado a gerar intrigas entre os outros nobres que não tinham os mesmos privilégios. Pressionado, o rei Alcebíades se viu obrigado a decretar uma intervenção suserânica no feudo de Agnelo.
Todo o feudo do Duque da Desesperança sentiu a foice ácida dos impostos arbitrários decretados pelo monarca. Muitos foram os que perderam tudo. Vários aldeãos tiveram seus filhos e filhas arrancados para serem vendidos como escravos para a Fortaleza de Turah.
Tudo estava indo bem. O rei enviava apenas seus coletores de impostos pessoais e o Duque era responsável pela escolta, mas uma aldeia fronteiriça manteve-se resoluta em não aceitar a taxação abusiva.
Apesar de Enoque ser o líder da Tropa Especial do rei, o monarca tinha total confiança em Sir Berwin e era a ele que Alcebíades recorria para tentar frear os ímpetos de Enoque. Devido a isso, o rei havia chamado os dois para conversar.
- Eu preciso que vocês sejam impecáveis – o rei falava impaciente.
- O que aconteceu? – Sir Berwin perguntou?
- Vocês sabem dos problemas que estão acontecendo no feudo de meu irmão. Sabem também que estava começando haver um descontentamento geral e que os outros feudos do reino começam a se rebelar. Tudo porque o imbecil de meu irmão não consegue manter o pinto nas calças e a boca sem comida.
- Mas Vossa Majestade não havia mandado seus coletores de impostos para resolverem o problema?
- Mandei sim, Enoque, mas o retardado do Agnelo sempre governou sob ameaça de revolta. Eu sempre precisei ajudá-lo a conter seus súditos, mandando um pequeno destacamento. Mas agora, após o aumento dos impostos, vários insurgentes têm aparecido. Mandei algumas tropas que conseguiram conter alguns pequenos focos, mas uma aldeia na fronteira do reino conseguiu rechaçar todos os reforços enviados.
- E porque o senhor não manda um ataque maciço contra essa aldeia?
- Não vale a pena Berwin – o rei assentiu com a cabeça concordando com Enoque – Os outros feudos poderiam tentar se aproveitar da situação e tentar atacar enquanto Kador estivesse desprotegida.
- Certo, e Vossa Majestade pretende nos enviar para acabar com essa aldeia. Mas até agora não consegui entender uma coisa. Como é que uma simples aldeia conseguiu rechaçar todos os reforços enviados?
Tentando conter a raiva, esfregando as mãos uma na outra e apertando os dedos, enquanto caminhava de lado a outro da sala, o monarca começou sua preleção.
- Essa aldeia faz fronteira com uma das regiões mais inóspitas de toda Brant. Não é por acaso que meu irmão, o único que poderia ameaçar meu trono foi agraciado com essas terras para ter o seu feudo. Constantemente o feudo de meu irmão sofre ataques dos guerreiros de Vizu que costumam saquear em busca de alimentos. Essa aldeia foi saqueada durante décadas por esses guerreiros.
- E quem são esses guerreiros? - Enoque estava cada vez mais interessado. Era fascinado por povos belicosos.
- Esses guerreiros são nômades, e vivem ao sul, na região mais árida do Grande Continente, no inóspito Deserto de Aynol que faz fronteria com Brant. Como vocês devem saber, para atravessar o deserto, gasta-se mais de meia lua a cavalo. Os dois assentiram com a cabeça. Berwin já havia escutado sobre aquele povo do deserto, mas sempre teve dúvidas de quanto era lenda e quanto era realidade.
- Eles Vivem do saque às caravanas da rica Fortaleza de Turah, situada no coração do Deserto de Aynol e que fora fundada ao redor de um rico Oásis. Esses guerreiros eram conhecidos por todo o Grande Continente pela ferocidade de seus ataques e por sua resistência física. Comenta-se que um bando de guerreiros de Vizu lutou durante três dias seguidos durante uma emboscada arquitetada pela sultana da Fortaleza de Turah.
- Pois de onde venho nunca ouvimos falar desses tais guerreiros – comentou Enoque.
- Dizem que são os maiores guerreiros de todo o grande Continente – acrescentou Berwin.
Enoque já ia protestar, mas o rei não o deixou falar e continuou seu relato.
- Essa cidade-fortaleza era a mais próspera e rica cidade de todo o Grande Continente. Por dentro de seus fortificados muros havia galerias de túneis escavados na areia escaldante e que levava a riquíssimas jazidas de metais e pedras preciosas. A Fortaleza de Turah comercializava com todos os reinos e desde a lendária revolta dos escravos da floresta, sua principal compra eram escravos para trabalhar nas minas e mulheres para as festas, para os afazeres domésticos, e para a agricultura.
- Lendária revolta dos escravos?
- Eu me lembro dessa história. Você não conhece porque não é daqui. Todo mundo de Brant conhece essa lenda.
O rei assentiu com a cabeça permitindo que Berwin continuasse.
- A história dos guerreiros de Vizu está atrelada a essa lenda. Ela remonta há mais de três mil anos. Segundo dizem, os nativos da Floresta da Desesperança e esses guerreiros, pertenciam a uma mesma tribo e que, devido a sua lendária resistência física foram capturados para trabalhar nas minas da recém fundada Aldeia de Turah. Aqueles que conseguiram escapar embrenharam-se para o interior da floresta e as muitas superstições ligadas à mesma, favoreceram para que fossem esquecidos. Aqueles que foram capturados permaneceram sobre o jugo da aristocracia turahniana que então surgia. Após Trezentos anos de trabalhos forçados, um grupo de quatrocentos escravos, entre homens e mulheres, se rebelou e conseguiu fugir. Mas antes de sua fuga mataram um terço da guarda da Cidade de Turah. Esse grupo de rebeldes realizou uma longa jornada até uma região rochosa conhecida como Vale de Vizu, que segundo conta a lenda, foi onde eles se fixaram. Nessa longa jornada, mais de sessenta por cento pereceu devido ao castigo do deserto e as constantes lutas contra a guarda de Turah que os perseguia. Conta-se que somente os melhores guerreiros e as mulheres mais resistentes conseguiram sobreviver. Desde então, esses guerreiros têm sido uma ameaça constante aos governantes da Fortaleza de Turah e as aldeias fronteiriças dos reinos que cercam o imenso deserto.
- Obrigado Berwin. Excelente explicação – Alcebíades pousou a mão no ombro do cavaleiro – Agora deixe-me explicar como essa aldeia virou um transtorno para nós.
Fez uma pequena pausa e dirigiu-se até a janela. O reino era tão vasto quanto seus problemas.
- Durante os muitos anos de incontáveis ataques, essa aldeia viu-se obrigada a construir estruturas para se defender das investidas dos guerreiros de Vizu. Segundo relatos, os aldeãos da pequena aldeia tornaram-se exímios construtores de túneis para poderem evadir-se da aldeia em direção a floresta na iminência de um ataque.
- Certo, e como eles conseguiram rechaçar os nossos ataque fazendo apenas túneis?
- Segundo rumores nas redondezas, um forasteiro vindo de um dos reinos do norte estava por trás da rebelião dos aldeãos e os havia ajudado a desenvolver estratégias para, ao invés de fugirem, defenderem-se contra as nossas represálias. E, como a aldeia fica muito próxima da Floresta da Desesperança, os aldeãos aproveitaram a abundância de madeira existente e construíram uma paliçada em torno dela. Ao que parece, um pequeno fosso foi cavado e várias estacas colocadas às margens próximas a paliçada, de forma a impedir que haja aproximação à barreira.
Berwin estava cansado e dormiu enquanto se relembrava dos eventos anteriores. Teria um dia cheio pela frente. Seu companheiro de quarto também dormia.
Conforme as informações obtidas pelo rei, o forasteiro fora decisivo nas decisões em não aceitar o aumento dos impostos, tinha forte influência sobre o chefe da aldeia. O rei não teve dúvidas. A aldeia deveria ser arrasada e este forasteiro deveria ser capturado, posto a ferros e executado em praça pública.
A ordem era que a ousadia da aldeia não poderia passar em branco. Se não houvesse uma ação enérgica por parte do rei, outras aldeias e feudos poderiam se levantar contra a autoridade do monarca. Assim, todos idosos e crianças deveriam ser exterminados sem clemência. Da população adulta, só deveria restar vinte por cento, o restante, ou seriam mortos ou vendidos como escravos.

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