sábado, 29 de janeiro de 2011

Forasteiro

Chovia e Daniel corria desesperadamente pela mata. De sua testa escorria um filete de sangue, resultado de uma pedrada. Seus braços possuíam escoriações e sua cabeça latejava. Mas, para ele, isso era o que menos importava. Pois ele corria e seu objetivo era salvar sua vida.
Logo atrás do rapaz, um grupo formado por garotos da mesma idade que ele, corria em seu encalço. Estavam fantasiados com roupas de esqueleto e proferiam ameaças e palavrões.
- Pode correr, forasteiro, mas suas malditas pernas não o levarão muito longe! – Esbravejou um deles.
- Vamos matar você por ter se metido em nosso caminho.
- Devolva a aberração!

O garoto tinha apenas treze anos e em seus braços havia um filhote de labrador. O animal estava ferido devido aos maus-tratos daqueles que os perseguiam e possuía uma característica peculiar: uma deformação óssea que formava uma pequena protuberância na cabeça logo acima dos olhos.
O ar faltava-lhe nos pulmões e as pernas ardiam pelo esforço. Queria parar, precisava parar, mas não podia. Apertou ainda mais o filhote junto ao peito e saltou sobre um arbusto.
E caiu.
Daniel rolou pelo barranco. As pedras machucavam-lhe os braços. Na queda, o adolescente procurava proteger o animal indefeso.
De cima da ribanceira os adolescentes fantasiados riam e observavam o garoto machucado levar a mão ao tornozelo.
- Está sentido dor, forasteiro? Pois nós mostraremos o que é dor e ela será a ultima coisa que sentirá.
O que parecia ser o líder do bando arremessou uma pedra. Os outros o imitaram e uma chuva de seixos caiu sobre o garoto e o filhote. Um pedaço de cascalho acertou Daniel na cabeça e ele perdeu a consciência.
- Acorde, estúpido!
Daniel acordou com um balde de urina no rosto. O gosto salgado e o cheiro fizeram-no sentir nauseado. Estava amarrado a uma árvore. Ainda zonzo conseguiu identificar que estava próximo ao barranco que caíra.
- Por quê? – O menino prisioneiro perguntou.
- Ainda pergunta, forasteiro?
- O que fiz a vocês?
- Você se intrometeu entre nós.
- Vocês estavam machucando o filhote.
- Nós somos os caveiras. Ninguém se intromete com a gente, muito menos forasteiros como você – Falou o líder, dando um soco no estômago de Daniel.
- A aberração nos pertence e fazemos o que quisermos com ela – Disse outro, esticando o braço e mostrando o filhote que segurava pelo couro do pescoço.
- Parem com isso – Daniel gritou.
- O que vai fazer, forasteiro? – O líder perguntou, sacando uma faca.
O cativo nada disse. Apenas mirava a lâmina próxima ao seu rosto.
- Não se sente tão corajoso, não é? Acho que é hora de brincarmos com você agora. O que acham? – O líder perguntou para seu bando – Trocamos uma aberração por outra?
- Acho uma péssima idéia – disse uma voz por trás das árvores.
- Quem disse isso? – O líder perguntou.
O grupo se agitou olhando para todos os lados do descampado.
- Solte o garoto – Disse um homem, saindo por trás das árvores. Usava um manto e o capuz cobria-lhe o rosto.
- Quem é você que pensa que pode dar ordens a nós caveiras? Mesmo sendo um adulto, somos treze contra um.
- Sim, estão em maior número. Mas, o nome Hanson diz alguma coisa a vocês? – O homem levantou o capuz e mostrou seu rosto – João Hanson.
- Jo- João Hanson?! – Perguntou aturdido o líder do bando.
- Vejo que já ouviu falar de mim – João respondeu sorrindo.
- Me-mesmo você não é páreo para os ca-caveiras.
- Já sei quem são vocês. Só resta saber o que farão.
- So-somos os caveiras e e-estamos em maior número.
João se escorou em uma árvore próxima e cruzou os braços.
- Olhe para trás e conte novamente – O cavaleiro falou.
O líder do bando olhou e não precisou contar. Estava sozinho. E sua faca caiu... e suas pernas correram... e o líder do bando chorou. Pois a lenda estava atrás dele... pelo menos era isso que imaginava. Ele não era mais um caveira, nem um homem. Apenas uma criança, que tinha medo e que corria para segurança.
João Hanson caminhou até Daniel e desamarrou-o. O adolescente o fitava assombrado. Nada se falava, apenas olhos fitavam. O garoto examinava seu salvador e mil coisas surgiam em sua mente. O nome proferido... e a lembrança que tinha. Os olhos do cavaleiro avaliavam os ferimentos.
- Seu nome é João Hanson? – Daniel perguntou timidamente.
- Sim – Respondeu o cavaleiro apertando o tornozelo do rapaz após desamarrá-lo.
- Ai.
- Não parece quebrado.
- Mas dói.
- Eu sei, me desculpe. Mas, precisava ter certeza de que não estava quebrado para podermos caminhar até Andreanne. O que aconteceu com você?
- Eles estavam torturando o filhote.
João Hanson caminhou até o animal que estava encolhido próximo ao barranco.
- É fêmea – O cavaleiro falou.
- Quem?
- O filhote.
Daniel tentou caminhar para poder ver e a dor no tornozelo o impediu. João pegou o filhote nos braços e levou até o adolescente.
- É mesmo. É uma cachorrinha – Daniel passou o dedo sobre a testa do animal que se encolheu ao toque. O dedo deslizou sobre a protuberância – Vou chamá-la de Uni.
- Uni?
- Sim. Uni. De unicórnio. Um cavalo com chifre.
- Mas ela não é um cavalo.
- Sim, mas veja. É como se tivesse um chifre.
João sorriu e acariciou a cabeça do animal.
- De onde você é? – O cavaleiro perguntou – Sei que não é de Andreanne.
- Não, não sou. Sou de Nova Jersey.
- Não conheço.
- É muito longe. Para falar a verdade, não sei ao certo como cheguei aqui. Você vai achar estranho, mas sei que vai acreditar em mim.
- Por que acha que irei acreditar? – João perguntou divertido.
- Porque acredito que uma fada é responsável por eu estar aqui. E sei que você também já esteve diante de uma.
João olhou assustado para o garoto.
- Como sabe?
- Eu o conheço... sei muito de você. Pode parecer estranho, mas acredite em mim.
João fez menção em falar, mas Daniel o impediu.
- Por favor, apenas me escute.
- Sua esposa, Arianne já lhe contou sobre os outros mundos, não foi?
João levou a mão a espada por cautela.
- Como sabe disso tudo? É alguma espécie de bruxo ou iniciado?
- Não. Sou de outro mundo. Lá não há dragões, gigantes e Trolls. Lá não viveu um Rei como Anísio ou Primo. É um mundo diferente, mas semelhante em muita coisa. Lá há livros... e eles nos levam a sonhar... e a criar.
- O que quer dizer com isso?
- Bem...meu pai esteve doente, assim como o seu. Minha mãe passava muito tempo com ele e me deu um livro. Esse livro me apresentou a história desse mundo maravilhoso que é Nova Ether. A cada dia que eu folheava as páginas, mais eu me encantava com o mundo de vocês. Um dia... enquanto eu lia... eu dormi e sonhei. No meu sonho, um ser místico me convidou a vir à Nova Ether. Ele contou... um... dois... e três. E eu estava em Andreanne. Vi a tudo. Pude ver a Banshee chorar de um olho só. Presenciei o ataque cruel do pior pirata que já existiu ao porto de Andreanne. Vi quando você morreu e Arianne pediu por sua vida à Banshee. Eu estava lá quando o maior dos Reis se foi assim como sua Rainha.
- Eu... eu... não acredito.
- Meu pai morreu no mesmo dia que o seu. Quando você falava com ele uma última vez, eu estava lá... e chorei por nós dois.
- Homem não chora...
- Não é fraqueza chorar. Meu pai me dizia... valoroso é aquele que demonstra suas emoções sem ter vergonha do que sente.
- Tudo que você disse qualquer um poderia saber.
- Eu estava lá quando você fez o pacto com aquela fada maligna... e quando você quis ver Arianne mais uma vez.
- Pelo Criador... eu...
- Vi sua confusão quando Maria saiu com o príncipe Axel e você e Arianne foram descobertos no feno da carroça pelo Troll.
- Está certo. Acredito em você.
- Foram três as vezes que estive aqui. Após a morte de meu pai... minha vida era acompanhar sua História.
- Isso soa a mim, como uma obsessão.
- Minha mãe dizia ser uma fuga.
- E para você, o que se parece?
- Para mim, Nova Ether era minha libertação. Quando eu estava aqui, não havia o vazio que meu pai havia deixado. Eu vivia junto com vocês. Sabia o que vocês sentiam... era como se eu não sofresse sozinho.
- É meio constrangedor escutar isso. É como se nossa mente e nossas vidas fossem invadidas por você.
- Ouvindo você falar, faz eu me sentir mal, mas era meio assim mesmo.
- E o que estou pensando agora?
- Não sei.
- Não? – João perguntou cético.
- Não. Desta vez está sendo diferente. Quem me trouxe não foi o ser místico e sim uma fada. Pelo menos era isso que me parecia. Eu estava lendo o livro mais uma vez. Queria reviver o momento em que você foi nomeado escudeiro. Queria poder ver sua coragem mais uma vez. Queria me sentir corajoso... como você. Mas, ao dormir... parece que fui arrastado para cá e vim, não como observador, mas como um personagem dessa história. E não sei como voltar.
- Precisamos ver como podemos ajudá-lo.
- Você vai me ajudar a voltar?
- Vou tentar. Arianne deve saber alguma forma de levá-lo de volta.
- Obrigado, João. Não acredito que estou vivendo tudo isso – Daniel falou animado.
- Você disse que queria se sentir corajoso como eu.
- Sim. Sempre tive medo.
- Eu também tenho medo. Todos têm.
- Mas eu tenho muito medo.
- Corajosos são aqueles que temem, mas têm força para enfrentar seu temor.
- Eu queria ter essa força.
- E não tem?
- Não?
- E esses ferimentos?
- São a prova de que não tenho essa força.
- Está enganado. Os ferimentos são a prova de que não sabe lutar. Mas, provam também sua coragem. Afinal, você tentou sozinho proteger o animal... a Uni, de treze delinqüentes. Sozinho.
- Escutando você falar parece até que fiz muita coisa. Mas, na hora eu só queria correr e ir com ela para um lugar seguro.
- Em nenhum momento pensou em deixar a filhote para trás? Seria mais fácil de escapar.
- Não. Eu não poderia. Eles a torturariam.
- E resolveu enfrentá-los mesmo sabendo que não poderia lutar com eles.
- Não queria lutar com eles. Queria apenas que parassem de torturar a Uni. E eu não sei lutar. Comecei umas aulas de caratê, mas foi só o básico.
- Que luta é essa?
- É uma forma de combate em que se usa as mãos limpas. Estava aprendendo com um japonês.
- Japonês?
- Sim, um oriental.
- Pelo visto não aprendeu muita coisa – João falou divertido.
- Não – Daniel respondeu sem graça.
- Gostaria que eu lhe ensinasse alguma coisa?
O adolescente olhou animado para João. Os olhos brilhando.
- Você me ensinaria?
- Se você gosta de proteger animais indefesos, precisa ao menos saber defender a si mesmo primeiro. Ou posso procurar alguém que lhe ensine a correr mais rápido.
- Prefiro aprender a me defender – O garoto respondeu emburrado.
- Como é seu nome?
- Daniel... Daniel Larusso.
- Pois bem Sr Larusso. irei ensinar-lhe alguma coisa. Segundo você disse, durante muito tempo, observou a minha vida. Agora irá vivê-la um pouco, e, sua própria vida, nunca mais será a mesma.

6 comentários:

  1. Um conto que cativa! Com sensibilidade e emoção! Muito bom! Parabéns!

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  2. Goste demais, filho! Não esperava q fosse o Karatê Kid! Vc me surpreendeu. Bjs

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  3. Obrigado. Quero ver se faço outro conto para postar aqui.

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  4. Marcos,

    Adorei o conto!!
    Muito fofo mesmo!
    Meu sonho uma fada me levar para Nova Ether como fez com o Daniel...
    Estava dando uma olhada nos posts antigos aqui do seu blog e vi que você também gosta muito do Raphael Draccon. Eu li a Trilogia Dragões de Éter esse ano e é uma das minhas séries preferidas!
    Agora estou só esperando chegar o Peregrino na minha casa para conhecer melhor seu trabalho, mas por esse conto já vi que você escreve muito bem!

    =)

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  5. A magia de Nova Ether não tem igual e o Draccon escreve como ninguém. Espero que goste da leitura de Peregrino.
    Aguardo seus comentários.
    Se puder, não deixe de ver os outros contos. Há dois que não são ambientadoes em nova Ether.
    Grande Abraço

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