Mais uma vez, como todos os dias, o sabiá pousou na pedra à margem do riacho, e seus olhos fitaram as águas.
Mais uma vez, ele perdeu a noção do tempo e do espaço.
Mais uma vez ,ele lembrava do passado...
Um pardal pousou ao seu lado, descendo na rocha suavemente, sem fazer barulho.
- Desculpe, Seu Pardal, estava longe...
- Sim, meu amigo... como todos os dias – falou afavelmente.
- Você percebeu? – O sabiá baixou a cabeça constrangido.
- Estranho seria se eu não tivesse percebido. Você não canta mais, perdido em seus pensamentos, olhando as águas do riacho.
O sabiá olhou para as águas... mais uma vez.
- Elas levaram uma parte de mim – a ave murmurou, sem tirar os olhos do riacho.
- Quem? – O pardal perguntou.
- As águas... foi no dia que perdi a capacidade de cantar... ou melhor, perdi a paixão pelo canto.
- Não entendo.
- Como você já sabe, há alguns meses, minha parceira pôs alguns ovos. Ficamos muito felizes, pois seria nossa primeira ninhada. Mas, o que você não soube e quase ninguém soube... um ataque de um falcão levou nossa alegria embora... só restou um.
- Pensei que sua companheira estivesse viajando à procura de um lugar melhor para o ninho...
- Não... – o sabiá não desviava os olhos das águas – Não dissemos para ninguém. Após o ataque, minha companheira ficou muito fraca. Não conseguia mais voar. Seus ferimentos eram graves, e, segundo o Doutor Coruja, ela, dificilmente, recuperaria os movimentos das asas. Além disso, ele desaconselhava outra cria. Assim, abrigamos nosso ovo em outro ninho, escondido nas folhas daquela árvore – A ave apontou com uma das asas para uma árvore frondosa perto do riacho.
- Não entendo.
- Pensamos que ele estaria seguro. Se ninguém soubesse de nosso ovo, o falcão ou outro predador também não saberia... mas ele não estava seguro. Na última tempestade... os ventos foram muito fortes.
- Eu lembro. Tive que me esconder em uma caverna para não ser levado pela rajada dos ventos.
- Sim, e nosso filho caiu nessas mesmas águas que estão diante dos meus olhos. A imagem não sai da minha cabeça. Meu filho... ainda por chocar... sendo tragado por essas águas. Aquele que havia sobrevivido... o fruto do nosso amor... ele se foi.
- Agora entendo. Todos esses dias... por que não contou a ninguém? Eu poderia ter tentado ajudar de alguma forma.
- Obrigado, meu amigo, mas não há nada a fazer. Meus filhos que nunca chegaram a nascer não voltarão, meu amor... nunca mais voará.
- E o que pretende fazer?
- Além de me lamentar?! – O sabiá virou-se para o outro pássaro. Havia desespero em sua voz... e em seu olhar. Cuidar da minha companheira. Ela depende de mim.
- Nada mais além disso? – O pardal pergunto cético.
- Não entendo sua pergunta, meu amigo Pardal.
- Parece-me que, diante dessas águas, você faz muito mais do que se lamentar.
- Claro, maldigo minha sorte também – A ironia não estava só nas palavras, em cada sílaba, mas também no olhar do pássaro.
- Acredito que, todos os dias, você têm sonhado diante dessas águas...
- Sonhado? – Sr Pardal, em verdade eu digo a você, não sei mais o que é sonhar. Pelo menos não um sonho bom. Minha vida tem sido viver um pesadelo.
- Meu amigo Sabiá, cada dia dos últimos dias, você tem pousado nessa mesma pedra. Eu o tenho observado. Está sempre aqui, no mesmo horário. Acredito, pela sua história, que esse foi o horário que seu ovo mergulhou nessas águas. Estou certo?
O Sabiá virou o rosto e voltou a fitar as águas.
- Quase um ritual. Uma mesma intenção... um mesmo pensamento. Sonhar com o filho não nascido. Torná-lo vivo... em lembrança. Um pai sonha com o futuro do filho quando esse ainda está sendo gerado. E esse sonho vai sendo materializado e modificado durante a convivência com esse filho que nasce e cresce. Mas, isso foi tirado de você... só lhe restou o sonho...
- O que você deseja, Pardal, me torturar? – Seu tom de voz era gélido, cortante.
- Quero modificar seu mundo.
- Não meu amigo, o mundo é o que fazemos dele. Você sabe disso. Sua necessidade de viver seu sonho é a maior prova disso.
- Não diga besteiras, pássaro. Meus filhos estão mortos antes mesmo de nascerem. Minha companheira está moribunda em nosso ninho escondido, e, não há nada que possa mudar isso.
- Engana-se.
- Que absurdo pretende me dizer?
- Há uma magia antiga que pode realizar um sonho. Quando o amor é maior que o querer... quando a vontade de servir é maior do que sua própria necessidade de realização.
- Não queira colocar esperanças em um coração atormentado. Aquele que sofre anseia por esperanças... e só encontra mais sofrimento.
- A esperança molda o mundo.
- E aumenta o tamanho da queda...
- Apenas quando não se permite mais sonhar.
- Pare... eu lhe suplico. Deixe-me com minha vidinha. Estou preparado para viver meus momentos de tormento e, confesso, meu sonho do que poderia ter sido. Mas, não conseguiria viver tendo esperança de algo que nunca poderá acontecer.
- Quando sonha, meu amigo Sabiá, como imagina seus filhos?
- Não imagino mais filhos, apenas aquele que havia sobrevivido ao ataque. Ele havia virado um símbolo.
- E o que imagina para ele.
- Na verdade, me entristece saber que ele não poderá nunca sentir o ar passando por suas asas. Nunca conhecerá o amor. Uma melodia nunca sairá de seu ser... ele nunca conhecerá sua companheira.
- É exatamente isso que o atormenta? Não se entristece porque seu filho foi tirado de você?
- Sim, mas mais do que isso, aquele ovo... ele me ensinou muito. Mais do que saber que era meu filho, e, lamento tê-lo perdido e não tê-lo conhecido, o mais importante foi saber que ele existiu. Para mim, ele viveu e aquele breve momento de existência, ainda dentro da casca foi de grande importância... O que mais me machuca, é que ele merecia viver. Não por mim, mas por ele... esse é o maior milagre... viver – Uma lágrima escorreu dos olhos do pássaro e rolou por seu bico.
- E esse é o verdadeiro amor... – O sabiá murmurou – Se você pudesse saudá-lo como o faria?
- Eu cantaria.
- E como seria essa canção?
- É uma canção especial. Ela me acompanha todos os dias. Na verdade eu sempre a cantei.
- Nunca a ouvi.
- Porque ela sempre foi cantada aqui dentro – O pardal apontou a ponta da asa para o peito.
- Deixe-a sair então, meu amigo.
- Não sei se posso.
- Seu filho merece. Pense como uma homenagem... por tudo que ele representou e representa a você.
- Sim... ele merece.
O sabiá fitou as águas. No mesmo ponto onde muitos dias atrás, seu ovo mergulhara. Seus olhos se fecharam e uma doce melodia cortou o ar. Profunda... penetrante. Como se seu ser brindasse a vida e convidasse o símbolo do seu amor a viver através dele.
A música cortou o ar e invadiu a floresta.
O pardal fechou os olhos, seu bico se abriu e a melodia tomou conta dele. Ele cantava e era encantado pela música. Como se o som reverberasse dentro dele.
Outros pássaros vieram e pousaram nas proximidades. Em pouco tempo, todos cantavam. A música crescia e falava às entranhas da floresta. Comunicava-se com cada ser vivente. Cada gota de água ou átomo constituinte da molécula.
A companheira do sabiá despertou de seu sono provocado pelas ervas dadas pelo Doutor Coruja. Em seu sonho, sonhara com os filhos mortos e com o filho levado pela força dos ventos e das águas. Na imagem onírica eles agradeciam pelo amor recebido. Sabiam que havia sido por pouco tempo, mas, para eles havia sido intenso.
E sentiam-se felizes por terem sido amados.
No sonho, pediam que a mãe batesse suas asas e que alçasse vôo, pois o céu era o limite.
Com lágrimas nos olhos a sabiá despertou e suas asas estavam esticadas. Ela conseguia mexê-las. Elas eram embaladas pela doce melodia. Ela alçou vôo e dirigiu-se até a origem do som. Suas asas movimentavam-se velozmente e seu ser também cantava.
Quando ela chegou ao riacho, vários animais estavam reunidos. Todos cantavam e eram embalados pela música.
Um redemoinho se formou e de dentro do riacho uma pequena ave apareceu. Ela olhou para a ave diante da rocha. Sentiu o calor que emanava daquele pássaro. Era terno... como uma vez lembrava ter sentido.
Moveu suas asas pequenas e com dificuldade conseguiu voar. A melodia cessou a por pouco as águas não engoliram a pequena ave. Ela voou e pousou diante do casal de sabiás.
- Pai... mãe... sou eu, seu filho... eu voltei.
- Meu filho? – O pai murmurou incrédulo.
- Sou eu.
- Como pode? – perguntou a sabiá incrédula.
- Quando o amor é maior que o querer... – O sabiá começou.
- Quando a vontade de servir é maior do que sua própria necessidade de realização... – O pardal continuou.
- Quase um ritual. Uma mesma intenção... um mesmo pensamento. Sonhar com o filho não nascido. Torná-lo vivo... em lembrança. Um pai sonha com o futuro do filho quando esse ainda está sendo gerado. E esse sonho vai sendo materializado... – O sabiá não acreditava no que via, enquanto ia repetindo o que havia sido dito.
- O que mais machuca... era que ele merecia viver. Não pelo pai, mas por ele... esse é o maior milagre... viver – O pardal agitava as asas enquanto falava.
A pequena ave, recém saída das águas se adiantou.
- Estou vivo, não estou?
- Sim, minha criança – o pardal falou.
- Foi como um sonho. Parecia que me chamavam... que diziam que eu era importante por aqui.
- Meu filho, você é importante por aqui – A sabiá falou com lágrimas nos olhos, enquanto acariciava a cabeça do filho com a ponta de sua asa.
O pardal agitou suas asas para os outros animais. Esse era um momento importante para aquela família.
E deveria ser vivido apenas em família.
O pássaro levantou vôo deixando o casal aproveitar o momento com o filho. Os animais, todos aqueles que ajudaram com sua intenção, também se retiraram, respeitando aquele momento único.
Enquanto voava, a ave lembrava da última palavra proferida: Só pode ser um milagre. Sim, o pássaro respondeu em seu íntimo. Era um milagre. O maior deles...
Chamava-se amor.
Delicadeza imensa, amor profundo...Parabéns amigo.Vc se supera a cada dia!!!bjs
ResponderExcluirFilho,
ResponderExcluirEu continuo me emocionando a cada vez q leio...
bjs
Nossa Marcos!!!
ResponderExcluirEstou literalmente com águas nos olhos!!!
Você queria uma critica ferrenha e só posso dizer que AMEI!!
O conto por si só já é lindo, doce, sofrido, mágico, mas o fato de saber a partir de onde ele nasceu o torna ainda mais especial.
Parabéns por conseguir transformar em palavras sentimentos tão fortes como o amor e a esperança. São poucos os que conseguem fazer isso e você o fez com maestria.
Desse jeito vou ser obrigada a rever meu "preconceito" sobre contos.
Abraços
Muito lindo, Marcos!
ResponderExcluirContinuo me emocionando com a sua sensibilidade e a riquesa de detalhes dos seus escritos.
É simplesmente fabuloso.
Abraços!!
Obrigado, fico feliz que tenham gostado. Esse conto, especificamente, foi muito significante para mim.
ResponderExcluirÉ meu amigo, cada dia que passa a cada letra preenchida nas frases de seus contos; você consegue me surpreender. E é isso que o define como escritor. Essa sua capacidade de moldar as palavras em uma bela melodia e transmitir sua mensagem para o mundo de uma forma una.
ResponderExcluirContinue fazendo-nos sonhar!!!
Meu Anjo,
ResponderExcluirAcho que este é realmente o nome certo para dar a você, porque somente um anjo, expressa um sentimento como este, com tanta profundidade, clareza e colorido, para fazer com que todos encontrem na dor, um grande crescimento,no aprendizado da vida. Sua avó que o ama muito
Delphina
Na hora de criar meu apelido, nem reparei que o nome Delpha não tinha saído correto. Já corrigi, para meus próximos comentários em futuros contos.
ResponderExcluirBeijo
Delpha
adorei, de verdade. o diálogo foi intenso, as imagens foram vívidas. arrepiei inteira! parabéns Marcos!
ResponderExcluirSó faltava esse seu conto pra eu ler.
ResponderExcluirMais uma vez gostei bastante. Gosto de histórias com parágrafos curtos, são bem dinâmicas. Uma linda história de amor, de um amor muito puro!
Adorei as fotinhas dos passarinhos também! =)